Vida Religiosa provisória: um desafio a ser enfrentado
João Mendonça, sdb[1]
Há quem diga que a Vida Religiosa tradicional desenvolvida até meados do século XX já perdeu sua razão de ser. As assim chamadas novas formas de Vida Consagrada chegaram para assumir o lugar de uma tradição decadente. Portanto uma nova forma de Vida Religiosa desponta no horizonte da provisoriedade. Não mais vida fraterna para sempre, muito menos conselhos evangélicos perpétuos, nem missão duradoura, simplesmente uma escolha de vida provisória por um tempo determinado pela pessoa, entre cinco e dez anos. E do conhecimento nosso que na tradição budista é possibilitada a todos uma experiência de vida monástica, o que não significa que vão se tornar efetivamente monges pelo resto da vida. Contudo seria isto um contexto de vida provisória ou religiosamente pedagógica?
Acredito que seja mais pedagógica, em vista de um mergulho no mistério do budismo, do que uma eventual vivência religiosa sem influências sobre a vida posterior. No caso da Vida Religiosa dita provisória se postula a possibilidade de uma experiência por um período, quase um voluntariado, e no fim do prazo retorna-se ao ambiente familiar. Aí eu pergunto: é possível ser religioso ou padre por uma década e depois viver como se tudo isso não fizesse parte do seu ser?
O chamado de Deus não é algo exclusivo para estar com ele? A Vida Religiosa não se constitui a partir desse chamado? O Senhor que chama pode simplesmente mudar de ideia e deixar de chamar? O religioso pode até pensar que o fato de não sentir mais o encanto da Vida Religiosa perpétua é porque perdeu a vocação, mas pode-se perder algo que nunca encantou desde as entranhas? Seria o caso, então, de refazer a compreensão teológica do chamado?
Questões de sentido
Diante desses questionamentos, exponho duas teorias muito interessantes que despertam nosso interesse sobre esta provisoriedade da Vida Religiosa.[2] Segundo Favale, as teses dizem o seguinte:
• A Vida Consagrada, na sua primeira manifestação, o estilo monástico, nasceu perfeita, enquanto as outras formas posteriores não seriam Vida Consagrada propriamente dita, a não ser que coincidam com o estilo monástico. Com isto se quer dizer que a Vida Consagrada, com seus variados estilos, seria apenas a história de uma progressiva decadência.
• Há uma reação a essa tese que reza o seguinte: a Vida Consagrada teria nascido no monaquismo como um embrião, uma coisa imperfeita, que, com o passar do tempo, foi sendo aperfeiçoada. Consequentemente, cada nova forma de Vida Consagrada é um passo a mais no desenvolvimento e na completa formação da mesma, tendo nos institutos seculares o seu vértice.
Teorias postas, problema para refletir. Quem tem razão? Hoje, a tendência de muitos, mesmo de eclesiásticos renomados, é achar que há um esgotamento do modelo tradicional de Vida Religiosa, portanto são partidários da primeira tese. Outros mergulham de cheio na compreensão desse desenvolvimento histórico. No entanto, nenhuma posição me parece corresponder ao dinamismo do Espírito Santo na história, pois os carismas são frutos do Espírito e não meros caprichos dos fundadores. Acredito que o limite não é o tempo, mas a capacidade de inculturação do carisma no tempo e no espaço, e isso é uma tarefa carismática dos membros do Instituto.
Re-partir do carisma fundacional, portanto, é um desafio que se impõe hoje a todas as formas de Vida Religiosa, o que já pedia o Concílio Vaticano II: “A atualização da Vida Religiosa compreende ao mesmo tempo contínuo retorno às fontes de toda vida cristã e a inspiração primitiva e original dos institutos, e adaptação dos mesmos às novas condições dos tempos” (Perfectae caritatis, cf. n. 1). O termo contínuo quer dizer permanente, dinâmico, ousado, e não uma mera e nostálgica recordação do carisma do fundador.
Também existe o questionamento da diminuição das vocações, por isso que, para atrair os jovens, é preciso assumir algumas atitudes: ou voltar às antigas formas de vida católica tridentina que parecem agradar os jovens, como, por exemplo, o uso do hábito, a disciplina, o afastamento do mundo, a linguagem padronizada etc., ou adequar-se às novas ondas juvenis sem tanta disciplina, pouco estudo sistemático, uma espécie de vida mista que transita entre as relações afetivas e a castidade temporária etc.
A questão de base de toda esta problemática reside na re-definição do ser humano que estamos vendo no atual contexto, ou seja, passa-se do valor comunitário para o valor da “história pessoal do indivíduo”.[3] Segundo Merkle, o que o indivíduo busca é ser o centro de toda a realidade, ele reduz a religião e a Vida Religiosa a sentimentos íntimos; é um pertencer de forma “líquida” e “fazer o que se gosta”.[4] Ora, quem apenas gosta de algo ou deixa de gostar não aprendeu a amar. Vive-se do puro subjetivismo infantil, como uma criança que bate o pezinho ora para protestar contra alguém, ora para exigir um afeto e realizar um capricho.
Então, que é que isso significa para a Vida Religiosa? É muito simples e preocupante: o indivíduo com uma dependência absoluta busca um grupo ou um estilo de vida, não para ter uma vida partilhada no comum da fraternidade, dos conselhos evangélicos e da missão, mas para ter garantias de sua privacidade. Por isso não cria vínculos de pertença, não partilha da história do outro e não age em conjunto. Quando sua carência básica de consumo não é satisfeita, ele migra para outro grupo, abandonando sem dificuldades o que vinha desfrutando. Acontece também que tais comunidades formadas na base do privativo interesse,
quando se reúnem para programar, programam sempre em coisas mínimas: o mínimo de oração, o mínimo de sacrifício, o mínimo de vida comunitária, o mínimo de entrega comunitária aos outros. Por outro lado, há o máximo de individualismo, o máximo de liberdade e o máximo de comodidade. Resulta, assim, num projeto de vida que não encanta a ninguém, um projeto para ser vivido sem muitos problemas.[5]
Este sim é o verdadeiro eclipse da Vida Religiosa, seja ela na sua vertente tradicional, seja provisória.
Questões de significado
Ora, “a Vida Religiosa contesta a atitude da sociedade segundo a qual os investimentos humanos são sempre provisórios”.[6] O fato de algumas sociedades de vida apostólica terem como doutrina que os conselhos evangélicos são renovados a cada ano — por exemplo, as Irmãs da Caridade de São Vicente de Paulo —, não quer dizer que elas vivam do provisório, muito menos que a Vida Religiosa seja funcional. Mas trata-se de um dinamismo inerente ao próprio carisma fundacional que caracteriza não a busca do indivíduo, mas sua plena realização dentro de um projeto comum, pois a Vida Religiosa não é um fazer coisas segundo interesse pessoal, mas um ser pessoa interdependente, que partilha um projeto comum e age em comunhão com os outros.
O provisório, por outro lado, é apenas o voltar-se para si, mesmo que trabalhando com os outros, porém sempre fechado no próprio bem-estar, sem vínculos.
Quando um(a) religioso(a) professa, revela ao mundo e à Igreja que Jesus Cristo é o sentido pleno de toda a sua vida, seu modo de SER pessoa em relação. “Isso significa essencialmente optar por transcender a si mesmo, por abandonar a atitude egoísta de abrir-se para Deus, para a realidade e para os outros no amor.”[7] A auto-transcendência no amor é a base de qualquer Vida Religiosa. Agora, o drama de muitos religiosos na atualidade é cair na tentação do romantismo, ou seja, fechar-se em si mesmo, em seus problemas, em suas necessidades, em suas buscas de preenchimento. O desafio está em aceitar o realismo da vida, sobretudo o deixar-se questionar a partir dos destinatários da missão, a partir dos pobres. Quando isso é assumido coletivamente, a comunidade religiosa, e cada pessoa nela, se torna capaz de assumir compromissos coletivos. Trata-se do saber “viver juntos por causa de, não a fim de”.[8]
Questões de identidade
Contudo a crise do ser, assim chamado pós-moderno, é de viver no provisório. As relações são provisórias, os casamentos são cada vez mais provisórios, o trabalho é provisório, as alianças e pactos políticos são também provisórios e oportunistas. É um clima de incerteza quanto ao dia de amanhã que espanta a todos. Enquanto isso, a Vida Religiosa, de modo geral, sustenta a perpetuidade dos compromissos, mesmo sofrendo as amargas perdas de pessoal. A questão é que as novas gerações não respiram o clima cultural religioso católico herdado da família. Elas chegam de diversas experiências, todas, ou a maioria delas, transitórias, sobretudo religiosas. E possível até dizer que as várias religiosidades e espiritualidades transitam na vida das pessoas.[9]
O sincretismo perpassa a longa linha da vida e parece que a fé professada na sua dimensão de anúncio e conversão não chega a tocar as pessoas em profundidade. O processo formativo das novas gerações de religiosos (as) muito menos. A argumentação dos valores e das atitudes religiosas forma uma casca que, se perfurada, revela a fragilidade do ser que tem dificuldade de internalizar a cultura religiosa carismática do Instituto e, portanto, se comporta segundo o padrão esperado pelo seu grupo de interesses, mas não está disposto a agir no conjunto, e sim no privado.
E uma Vida Religiosa romântica e fragilizada, na qual o aburguesamento, desde os inícios da formação, mina a caridade, em que o consumismo enche os olhos e esvazia o coração, o individualismo ofusca o valor da comunidade e cria-se uma dependência do Instituto, pois tudo se espera receber como um ser totalmente dependente do afeto da mãe. Nesse caso, tanto o Instituto como a comunidade eclesial se transformam na mãe que faltou ao religioso. Isso significa que a pessoa não foi educada para administrar fracassos, frustrações. “O problema é o amor, a caridade.”[10]
Nesse sentido a Vida Religiosa provisória, expressa muitas vezes nos novos movimentos religiosos, “são os sinais de uma rejeição muito mais radical das igrejas institucionalizadas do que o ateísmo da modernidade, porque criam substitutos”.[11] Essa nova realidade pode ser até uma resposta à pergunta pelo sentido da vida, mas nada garante. Isso acontece porque é sempre mais “líquido”[12] o sentido de pertença, e a diversidade de referências contribui para a busca da identidade sempre mais desafiante, porque a ofuscada experiência do transcendente elimina o confronto salutar da dúvida e do mistério.
A dúvida não é um mau em si, é a brecha pela qual pode entrar a certeza de um projeto de vida centrado no bem-estar do outro. Por sua vez, o mistério é a oportunidade de cavar fundo na existência para encontrar a presença do totalmente Outro que se revela seja no privado, seja no coletivo.
É também possível que a Vida Religiosa perpétua, institucionalizada aos longos dos séculos, que tem a pretensão de ser sinal de testemunho e profetismo, seja porque favorece uma resposta pela busca de sentido, seja porque cria segurança para a pessoa, pode “tornar-se algo relativo, exatamente porque o indivíduo a privatiza. E por isso que muitos jovens buscam a Deus, mas rejeitam o Deus tradicional que encontram na Vida Religiosa institucionalizada.[13] Por isso as grandes decepções no atual cenário dos institutos religiosos tradicionais, com saídas inúmeras, sobretudo nos primeiros anos de votos temporários e da ordenação presbiteral.
Contudo há também outro elemento: o idealismo. Pessoas que criam castelos de areia e imaginam a Vida Religiosa como uma vida sem conflitos, sem incoerências, sem patologias. Quando encontram essas coisas, que infelizmente existem, devido à nossa humanidade, se desencantam, e não conseguem responder com uma relativa maturidade. Por isso é preciso educar a nova geração ao realismo, sem perder, no entanto, o encanto do sonho.
Tarefas pertinentes à Vida Religiosa
Que seria importante resgatar neste cenário complexo?[14]
· Re-elaborar a teologia da Vida Religiosa a partir dos paradigmas existenciais que trazem as novas gerações, com uma salutar síntese das coisas antigas: não é rejeitando a experiência do passado que vamos dialogar com o novo, mas instaurando o salutar confronto na busca da essencialidade, o serviço ao Reino.
· Recuperar a antropologia da Vida Religiosa: o importante é considerar o ser humano envolvido no processo de busca em vista de um projeto de radicalidade. A pessoa do religioso e suas raízes culturais precisam ser integradas no processo formativo contínuo, jamais estanque.
· Repensar o simbolismo teológico da Vida Religiosa: Martin Buber, para citar um exemplo, profetiza o “eclipse de Deus”,[15] aquela imagem clássica de Deus desaparece no cenário religioso fragmentado. Ora, a Vida Religiosa, como teologia, não pode ficar à margem dessa mudança, mesmo na sua missão específica. É preciso sair do mundo da clausura para instaurar um diálogo com a sociedade, com a cultura e com a própria Igreja.
· Nesse sentido a identidade da Vida Religiosa no atual contexto pode ser re-pensada nos seguintes paradigmas à luz do Documento de Aparecida:[16]
CHAMADA A SER |
CHAMADA A FAZER |
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— Testemunha significativa. |
— Participação ativa na ação pastoral |
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— Fiel ao Evangelho no meio das vicissitudes históricas |
— Presença em situação de pobreza, de risco e de fronteira (DA, n. 99c). |
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— Dom do Pai, seguimento de Jesus Cristo e serviço a Deus na humanidade. |
— Passagem de uma pastoral de conservação para uma pastoral missionária e projetual. |
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— Vida discipular místico-comunitária. |
— Formação de uma nova geração de religiosos (as) discípulos (as) e missionários (as). |
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— Vida missionária apaixonada por Jesus, verdade do Pai, capaz de mostrar a luz de Cristo às sombras. |
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— Conformação de uma nova sociedade de justiça e dignidade. |
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— Transformação de nossas obras em lugares de anúncio do Evangelho, de comunhão, principalmente para os mais pobres. |
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— Vida a serviço do mundo a partir do carisma fundacional. |
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— Especialista em comunhão tanto no interior da Igreja como na sociedade. |
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— Descoberta dos novos rostos da pobreza atual, das novas periferias, dos novos desertos e das praças onde estão os sem-trabalho. |
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— Integrada e integradora a partir da espiritualidade do carisma e de um processo contínuo de conversão pessoal e comunitária. |
||
— Promoção da conversão pastoral, do diálogo ecumênico e da pastoral urbana. |
||
— Avançar com ousadia, profetismo e humildade, para águas mais profundas: AVANCEM! |
Diante de tantos fatos aqui narrados, não bastam as boas intenções. A Vida Religiosa não é filha de um monaquismo perfeito, por mais valiosa que tenha sido ao longo dos séculos até nossos dias a vida monástica em todas as suas formas. Também o vasto movimento da Vida Religiosa não se desenvolveu desde o monaquismo como um embrião. Acredito, sim, que a Vida Religiosa manteve sempre sua abertura ao Espírito Santo na sensibilidade de homens e mulheres ousados que souberam ler os sinais dos tempos no contexto em que viviam e deram respostas a questões locais com horizontes universais.
Em consequência disso, o postulado de uma Vida Religiosa provisória, que nos assusta inicialmente, pode ser mais uma onda neste mar bravio que sacode o barco, mas não o afunda, porque o Senhor sempre está conosco e tem a força para fazer a tempestade acalmar-se e dissipar o medo. Por isso, creio recomendáveis três atitudes de fé:
1) Promover uma atitude contemplativa de todos, agradecendo a Deus pelo dom da vocação e da missão.
2) Cultivar um respeito recíproco, que ajuda a aceitar os mais fracos, respeitando a criatividade e a responsabilidade.
3) Consagrar ao Senhor todos os esforços da missão.
Questões para ajudar a leitura individual ou o debate em comunidade
1. Conhecemos, realmente, a história da Vida Religiosa Consagrada?
2. Assumimos a Vida Religiosa Consagrada como processo em contínua mudança ou como algo imutável?
3. Como nosso Instituto enfrenta a realidade da Vida Religiosa provisória?
Fonte: CONVERGÊNCIA, Dezembro de 2008.
[1] Padre João Mendonça é mestre em Educação, com especialização em Pedagogia Vocacional pela Pontifícia Universidade Salesiana, de Roma.